Espetáculos sem patrocínio e presença midiática
28/06/2011
28/06/2011
Ultimamente a Folha de S. Paulo deu oportunidades ao dramaturgo Leo Lama para falar de “Um espetáculo sem patrocínio”.
Através de uma leitura no auditório da Folha ou via artigo no Caderno Opinião, Leo Lama recusa “paternalismos”, constata que não “há interesse verdadeiro em arte”,
que “a discussão é de todos” e, movido por uma série de boas intenções, afirma que não se deve “entregar os pontos” diante das “injustiças”.
É fácil entender o Leo (não discuto os argumentos dele aqui), sobretudo quando se compartilha uma situação semelhante.
Mas e a Folha de S. Paulo?
Seu papel nessa discussão não é bem mais ambíguo?
A Folha cobra R$ 271.440,00 em dias úteis e R$ 339.144,00 no domingo para um anúncio de uma página inteira em chamados Cadernos Diários.
O preço de um quarto de uma página varia ainda entre 64 e 87 mil reais.
Aposto que poucos colegas do Leo chegaram a administrar tal montante de dinheiro em suas produções, muito menos para um único anúncio num jornal.
Sabemos que anúncios pagos de fim de semana ocupam um espaço muito maior do que a cobertura jornalística dos mesmos eventos artisticos,
sem falar das produções não comentadas.
Talvez a discussão seja de todos, mas certamente não a condição econômica.
Invocar o utópico critério normativo da “justiça” (como o Leo faz), num âmbito movido pelo lucro, pode parecer hilário ou ingênuo.
Mas o fato é que os preços extremos cobrados pelos anúncios constituem em si um mecanismo de discriminação cultural.
Os anúncios beneficiam os publicitários, as marcas patrocinadores, os veículos de comunicação e alguns poucos artistas.
Geram um mercado parasitário que se alimenta indiretamente da vasta produção cultural e dos verdadeiros interessados em arte, mas sem retribuição direta aos mesmos.
Pelo contrário, o constante aumento dos preços afasta cada vez mais os artistas - injustiçados e sem-patrocínio na linguagem-Lama - da mídia e da cobertura jornalística.
- “Toda obra de valor recebe em algum momento seu devido reconhecimento e a atenção que merece”, me disse uma vez o fotógrafo Thomas Farkaz, num daqueles discursos autoimunizantes de quem obteve sucesso. Segundo essa lógica (falsa): quem está na mídia tem valor cultural, quem não recebe atenção midiática não tem valor o bastante e quem perdeu atenção midiática perdeu valor. -
Concordo com o Leo e continuo discordando do Farkaz: presença midiática de forma alguma confirma a qualidade artística de uma obra. Presença midiática confirma somente utilidade midiática. Isso não é novidade. Mas a relevância de um fator cultural não depende de sua novidade, como muitas vezes o noticiário parece sugerir, mas de sua intervenção e persistência no processo social.
O trabalho dos veículos interfere de forma consistente na vida social, mas, ao meu ver, intervêm de forma brutal na sustentabilidade econômica do fazer artístico ao priveligiar a propaganda cultural no lugar da exposição e discussão da diversidade da produção artística.
Além do mais, não basta discussão. É preciso coerência maior entre discussão (ou promoção de discussão) e ação social.
Proponho à Folha de S. Paulo e qualquer outro veículo jornalístico a pensarem em amplos programas de Presença Midíatica das Artes, muito além dos roteiro e guias da cidade, onde a cobertura jornalística independa das condições econômicas do artista e de sua obra. Isso demanda um trabalho jornalístico ativo e investigativo no campo das artes, atitude que também falta com freqüência à adminstração política da cultura.
Wolfgang Pannek
Co-diretor da Taanteatro Companhia
PS: já ouço os pseudo-bad-boys da crítica cultural: “Porque não discriminar na cultura se a própria natureza é discriminatória?” ou “Para que a ilusão da veracidade do discurso e da coerência entre discurso e ação se o disfarce é elemento essencial da luta pela sobrevivência e cada discurso é somente um modo de coerção social?”.
Sobre a primeira objeção: a natureza não opera por meio de conceitos normativos baseados numa suposição de verdade compartilhada, portanto é problemático a simples transferência de supostos critérios da natureza para a vida social.
Sobre a segunda objeção: quem sabe ... a verdade foi sempre tão cara aos seus adeptos porque estava em falta. Muitas vezes, políticos, pastores e publicitários, entre outros comerciantes, inclusive de propriedades intelectuais, mentem e sabem que mentem - com o único motivo de aumentarem seus poderes, lucros e rebanhos. Mas a mentira como prática social difundida ainda não a instaura como lei do convício social e sempre dependerá da existência de uma noção de verdade, por mais problemática que seja. Proposições baseadas no “tudo é falso” ou “tudo é verdadeiro” são, sabidamente, auto-contraditórias e discursos sem referência a um critério de verdade desautorizam a si mesmas numa troca intersubjetiva que faz valer algum grau de racionalidade e de comprometimento social mútuo.
FOLHA DE S.PAULO DESFIGURA REFLEXÃO DE BOB WILSON.
de Wolfgang Pannek
02/12/2008
Já não surpreende e quase não escandaliza a ninguém ler manchetes jornalísticas que ignoram qualquer correspondência à realidade em função do impacto midiático imediato. Isso revelou-se novamente quando a Folha de S. Paulo se orgulhou ao sabatinar o encenador norte-americano Bob Wilson. A seguir o jornal noticiou:
‘Para Bob Wilson, atuar de forma artificial é mais “honesto’,
‘Teatro não é decoreba’ e
‘“Fazer arte é uma mentira” diz Bob Wilson’
(ver os links da Folha de S.Paulo no final)
Primeiro pensei: sucesso artístico e comercial não credencia à teoria estética, nem previne de falar besteira. Chamavam atenção a burrice e a falsidade das proposições contidas nessas manchetes. Quem conhece a precisão do teatro de Wilson talvez hesite em acreditar que sua reflexão teórica fosse tão equivocada. Comecei a redigir umas notas com o intuito de discutir o tema da 'mentira' e da 'honestidade' até mesmo independente do contexto original. Por fim ao verificar as locuções originais percebi que Wilson em momento algum disse o que as manchetes lhe atribuem.[1] Nos trechos em vídeo disponibilizados on-line pela Folha de S. Paulo, Wilson se volta contra duas coisas:
- Um teatro “escolar” e “decorativo” onde todos elementos da cena somente reforçam e duplicam as intenções psicológicas e a primazía do texto teatral.
- a suposição que as ações e os objetos no palco sejam ou podem ser "naturais".
Em relação ao primeiro ponto, Wilson recomenda “queimar” as escolas de teatro que promovem este teatro decorativo[2] e ressalta o teatro enquanto arquitetura, tendo o texto como um elemento importante entre outros igualmente importantes.
Em relação à segunda questão, Wilson enfatiza que qualquer coisa que ocorre num palco é esteticamente contextualizada pelo espaço cênico. Significa que o palco, ou qualquer outro formato, sinaliza uma convenção de percepção da realidade que avisa a todos que os gestos e movimentos realizados neste espaço e durante a apresentação não são “naturais”. São “artificiais”, ou arte. Em momento algum Wilson afirma que o teatro ou a arte enquanto tais sejam “mentiras”, mas que é uma mentira pensar ou afirmar que ações cênicas realizadas no palco sejam naturais.
Em outras palavras: Wilson critica o naturalismo e o realismo psicológico no teatro sob dois aspectos:
a) em função de sua pobreza de sentido (seu ataque ao teatro decorativo) que duplica um mesmo nível de sentido através de sinais materialmente diferentes mas com a mesma função semântica.
b) a confusão conceitual acerca do status ontológico da arte e do teatro por um lado e da vida cotidiana por outro.
Deduz-se que Wilson considera intencional a insistência no equivoco da naturalidade, sendo este o motivo de chamá-la de mentira. O naturalismo lhe parece menos "honesto" do que um teatro “artificial” (formalizado e coreografado) e por sugerir uma falsa idéia acerca do status ontológico do teatro e da arte em geral, isto é, por sugerir que arte e vida cotidiana pertencem ao mesmo domínio de realidade, o da naturalidade.
Antes de aprofundar a questão se a arte é mentirosa por essência ou natureza e para evitar a dissolução indiscriminada de todos os conceitos no mesmo saco estomacal antropofágico vale perguntar: O que é uma mentira? Basicamente, eu diria, é uma proposição falsa, feita intencionalmente por um sujeito, para manipular um interlocutor e fazer com que este baseie seus juízos e atos numa avaliação equivocada da realidade.[3]
Se a arte fosse mentira, e se não fossemos capazes de distinguir entre domínios diversos de realidade, então as delegacias e os hospitais psiquiátricos seriam semanalmente inundidas por boletins de ocorrência sobre as atrocidades e loucuras cometidas nos teatros da cidade. Nas bilheterias haveria filas intermináveis de espectadores lesados reinvindicando a devolução do valor de ingresso depois de perceber a fraude: os personagens esfaqueados rescussitam de repente na hora do aplauso. Não é o que acontece. Desde Aristóteles, sabe-se que as ações artísticas são apreciadas justamente por entendermos que elas aparecem entre aspas, indicando um determinado modo de recepção enquanto ações de arte: assim nos deliciamos com desgraças, crimes, desesperos, injustiças e assassinatos deslumbrantes e de toda ordem.
E Wilson deixa sua consciência dessas ‘aspas’ evidente quando enfatiza que o espaço cênico fornece uma convenção que transfigura os atos nele realizados, tornando-os artificiais ou melhor, artísticos. É como se a arte avisasse: “o que os senhores assistirão aqui nas próximas tantas horas não deve ser confundido com o cotidiano.” Mesmo as artes performáticas, orgulhosas de seu caráter intervencionista, trabalham com a fronteira entre dois domínios de realidade, com a fricção, sobreposição e eventual confusão de fronteiras e é indispensável aos seus propósitos que a percepção desta diferença, e com ela as duas realidades, seja de alguma forma preservada.
Para Wilson o naturalismo e o realismo tendem à desonestidade em função de pressupostos teóricos e de modos de ação cênica que induzem o espectador a confundir-se acerca da essência da arte, sugerindo sua naturalidade.[4] A arte e o que ela produz não são naturais, mas por este motivo a arte não deixa de ser real. A arte é uma realidade de um outro tipo do que realidade cotidiana.[5] O artista que julga que sua arte pertence ao mesmo domínio da realidade cotidiana se equivoca, e ele mente se procura induzir o espectador à crença que as ações cênicas sejam reais no mesmo sentido que o cotidiano é real. Entretanto, para poder mentir e ludibriar o espectador o artista naturalista precisaria saber da falsidade teórica de seu naturalismo, mas neste momento, a rigor, deixaria de ser defensor do naturalismo.
Aqui a afirmação de Wilson entra num colapso porque seria preciso encontrar outros motivos que explicam as mentiras deste naturalismo e realismo desiludidos. Mas minha intenção principal não é expandir ao infinito as implicações ou eventuais contradições das afirmações de Bob Wilson, que vem contribuindo com a evolução e a beleza do fazer teatral das últimas décadas. Também não se trata de defender as suas idéias acerco da arte e do teatro.
O que incomoda e, ao meu ver, merece crítica é a maneira como alguns jornalistas - seja por simplificação, por incompetência ou mero sensacionalismo - desfiguram os argumentos de um artista e banalizam a discussão da função da arte na sociedade. Trata-se de um des-serviço ao artista convidado, à comunidade artística e ao leitor em geral. Simplificar aqui é desfigurar, traduzir errado é falsificar. Uma manchete como “A arte é mentira” coloca as artes e o teatro de volta no parque dos estereótipos, preconceitos, do mundo do duvidoso, do engano e das falsas aparências com todos seus pressupostos ideológicos. Posta erroneamente na boca de um artista prestigiado, a banalidade e falsidade de tal proposição ganha ares de relevância. Não há motivos que justificam que tais deturpações sejam divulgadas pelo “jornal de maior circulação do Brasil”.
[1] É importante ressaltar que a tradução da exposição de Wilson feita ao vivo, e disponíveis no Videocast Folha Online , não contêm os mesmos problemas que se encontram nas manchetes e nos breves artigos publicados na Folha Online. Ao meu ver isso piora a situação já que o jornal alcança via Internet, com informações falsas ou simplificadas (no caso dos artigos em questão), um público muito maior do que na sabatina, onde espectadores tiveram um acesso direto à fala de Wilson.
[2] Uma das manchetes traduz o ‘teatro decorativo’ mencionado por Wilson como “Teatro de decoreba”, o que é obviamente um equivoco que leva o leitor a um tema inteiramente diferente. Em momento algum Wilson disse "Queimem as escolas de teatro que só ensinam a decorar texto.” Wilson estava efetivamente opondo um ‘teatro arquitetônico’ privilegiado por ele a um ‘teatro decorativa, ilustrativo e escolar’.
[3] Obviamente baseamos constantemente nossos juízos e atos em avaliações equivocadas da realidade, mas o que importa aqui é um contexto comunicacional que visa a manipulação do outro através da retenção e da deturpação intencional do conhecimento..
[4] Sob este ponto de vista específico, não por ser adepto da teoria naturalista nem de seus métodos , considero necessário defender o realismo psicológico e o teatro dramático da crítica de Wilson (que se encontra aqui até certo ponto com Brecht). O critério principal de Wilson é a função contextualizadora da convenção teatral (p.ex. o espaço cênico) que indica que o acontecimento presenciado seja artístico e que norteia sua recepção apropriadamente. Mas a universalidade deste critério vale justamente para qualquer manifestação cênica independentmente do grau de sugestão psicológica ou naturalista inerente a um determinado estilo de atuação e encenação. Indiretamente, Wilson se engaja aqui numa desnecessária legitimação de seu próprio fazer teatral e da maior honestidade de sua linguagem.
VARIAÇÕES SOBRE LÍNGUA E LINGUAGEM de Wolfgang Pannek
Palestra de 07/10/2008 por ocasião do evento “Cultura em todas as línguas" no SENAC São Paulo.
Rosado, brilhante, maleável e veloz, dotado de glândulas ricas na produção de secreção fluída, nosso único músculo voluntário não sujeito ao cansaço, a língua – órgão que dá nome à fala e à escrita - é de uma extraordinária versatilidade. Formada essencialmente de músculo esquelético com arquitetura tri-direcional que permite sua mobilidade para todos os lados, a língua encontra-se ligada ao crânio através dos músculos extrínsecos, enquanto os músculos intrínsecos, que formam a própria língua, respondem pelo movimento e pelas alterações da forma da língua durante a mastigação e a deglutição. Coberto de 200 a 450 000 células de degustação, esse órgão maravilhoso distingue em cooperação com o olfato e através da recombinação quase ilimitada de qualidades e intensidades de sabor - do doce, do azedo, do salgado, do unami, da gordura, de nuances metálicas, alcalinas e aquáticas - uma infinitude de percepções degustatórias, dando assim sabor ao mundo.
Gatos e cachorros e com eles a maioria dos mamíferos, por mais que não saibam falar português nem alemão, tem conhecimento íntimo das delícias conferidas pela língua materna no processo de sua higiene corporal. O próprio animal humano sabe, cada um à sua maneira, dos efeitos singulares do toque da língua. Nosso mais sensível órgão de tato desperta - na prática dos beijos na boca ou em outras áreas do corpo, dignificados por denominação científica como cunilingus e anilingus - a ativação cerebral, derramando, via hipófise, uma enxurrada hormonal na circulação sanguínea. A adrenalina liberada pelos rins enfurece o corpo, a respiração acelera, vagina e pênis incham e umedecem, atestando o papel primordial da língua não somente no processamento alimentício, mas também na procriação e no prazer erótico. Além de suas incontestáveis e multifacetadas capacidades no tato, na alimentação, na interação afetiva e sexual e mais recentemente como veículo da percepção espacial de cegos, a língua possui, não por acaso, uma localização extraordinária: bem na boca como se sabe, evidenciando mais uma vez sua conexão particular com o mundo dos orifícios. A língua está situada na fronteira e passagem entre dois domínios, a saber: a caverna abissal e invisível que preenche o interior de nosso corpo e a exterioridade infinita e somente parcialmente visível do mundo ao nosso redor. De certa forma, a língua divide com o olho essa tarefa de intermediação entre essas duas esferas. Seu lugar na boca, lhe confere o status de uma instância reguladora que experimenta, prova, aceita ou rejeita, encarregada do metabolismo material e informacional entre o corpo e o mundo.
Apesar e sua inegável relevância, a língua sofre certo tabu. Sua exposição está condicionada a circunstâncias específicas, nem sempre públicas. Mostrar a língua remove a máscara social, revela a visceralidade e o informe. O rosto imóvel, identificável e apolíneo, se transfigura em careta, signo do ridículo, da idiotice, da feiúra, da volúpia. Exposta, a língua oscila entre a cumplicidade do humor anárquico – basta lembrar a cara icônica de Einstein com a língua de fora, tirando sarro e subvertendo o demasiado sério e a híbris racional - e o terror das carrancas assustadoras e selvagens que repelem a entrada não-desejada de impróprios nas entradas de templos e igrejas do mundo inteiro, e até mesmo nas residências burguesas particulares sob o título “Cão bravo”. Feições ferozes expondo a língua evocam espanto, identificando a língua física à língua mitológica através da metáfora da chama e do fogo, com seu poder ilimitado de criação e de destruição. É interessante especular sobre as eventuais afinidades entre palavras como língua e linga – que significa falo – ambas associadas ao poder de criação e do conhecimento, ou sobre a relação dos termos fala e falo, equiparando a expulsão da palavra à ejaculação do sêmen, e aludindo à idéia que tanto a língua quanto o sexo sejam modos de copula com o mundo. Conhecemos também a duplicidade do verbo “comer”, que demonstra o quanto as línguas latinas preservaram um agudo sentido fisiológico da palavra. Veremos mais adiante, que as dimensões corporais e ambientais são, a meu ver, de maior importância para a compreensão dos efeitos das línguas, linguagens e das culturas sobre nossos corpos, uma vez que nenhuma delas é concebível sem sua gênese, interação e história corporal e ambiental. Efetivamente as linguagens e culturas somente existem por meio e entre os corpos, sendo este o motivo de minhas divagações introdutórias e levemente humorísticas acerca do órgão língua. Até aqui já entendemos que a língua física tem não somente uma função elementar nos processos físicos da comunicação[1], ela própria também é leitora da linguagem dos sabores e integra em sua mobilidade diversos sistemas de signos corporais, gráficos e tridimensionais.
Língua e linguagem
Vale lembrar que a língua portuguesa diferencia entre língua e linguagem. O termo língua refere-se principalmente aos idiomas, ou seja, às línguas maternas com suas respectivas palavras, expressões e estruturas e regras gramaticais.[2] Linguagens são sistemas de signos corporalmente perceptíveis em forma de gestos, sinais, sons, símbolos, palavras etc. para transmitir idéias, significados e pensamentos. A linguagem verbal, falada ou escrita, é organizada de forma hierárquica e composta por fonemas, morfemas, palavras e frases. Opera por vias acústicas, visual-espaciais e de toque, e tornou-se, ao lado dos modos não-verbais de interação, a forma de comunicação mais exitosa.[3] Entre muitas outras tentativas, foi definida como sistema de signos, como instrumento da ação comunicacional, órgão biológico ou como mídia de formação de pensamentos. Similar a qualquer outra mídia é caracterizada por potencialidades e limitações. Entre as virtudes da linguagem encontram-se sua codificabilidade, a possibilidade de armazenamento e de transmissibilidade através do espaço e do tempo e suas múltiplas funções, a saber: a função emotiva ou expressiva, a apelativa e imperativa, a metalingüística, a informativa, referencial e representativa, a fática e a função poética. A diversidade desse conjunto funcional sublinha que a linguagem não se restringe à mera e pura transmissão de informações racionais, mas que a diferenciada interação afetiva é uma de suas mais importantes dimensões. Isso aponta para a idéia que língua e linguagem não são somente instrumentos de veiculação de representações pré-existentes a favor de finalidades futuras, reduzindo a interação a uma dimensão instrumental, mas que os processos de interação lingüística constituem campos atuais de vivência em direito próprio.
No início o verbo
A questão da representação do mundo e do conhecimento por meio da língua e da linguagem ocupa as cabeças pensantes desde os tempos bíblicos: “No início era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo” afirma João na abertura de seu Evangelho revelando sua versão do platonismo cristão. Palavra e Deus são idênticos. O orador – Cristo – encarna o corpo-palavra de cada dia e compartilha-o com seus apóstolos que, no ato da incorporação da palavra, vivenciam um eterno regresso mnemotécnico de volta à divina verdade inicial. Essa teoria de conhecimento já encontra expressão no mito da linguagem paradisíaca. Adão, ainda no paraíso, dizia palavras que expressavam a própria essência das coisas. Sua expulsão corresponde, neste sentido, a um exílio do jardim da verdade revelada e do reino das idéias. O contra-modelo desta pureza idealista do Éden, até hoje presente em concepções e propostas de linguagens universais, transmissoras de uma verdade unívoca, foi a escandalosa orgia lingüística de Babel. Mas tanto a verdade monogâmica de Adão, quanto as verdades prostibulares babilônicas, em ambos os mitos língua e linguagem são caracterizadas por potência criadora.
Numa determinada vertente de pensadores alemães, influenciados pela filosofia transcendental de Immanuel Kant (1724 a 1804) , a necessidade de formas apriorísticas da percepção como condições da possibilidade da experiência e do conhecimento, foi reformulada. As concepções desenvolvidas por Herder, Haman e Humboldt, posteriormente chamadas por Apel[4] de Teoria de linguagem transcendental-hermenêutica, supõem que experiência somente seja possível em função da existência apriori da linguagem. O erudito, estadista e co-fundador da universidade de Berlim, Wilhelm von Humboldt (1767 a 1835) argumentava que a linguagem com suas dimensões estéticas e racionais, ao diferenciar entre o sujeito da cognição e seu ambiente, constituía realidade, e que nossa visão de mundo é fundada na linguagem: cada linguagem cria um mundo específico.
Dessa premissa podemos deduzir que o desenvolvimento e o aprendizado de línguas e linguagens permitem a geração e o conhecimento de outros, novos mundos, sendo que a própria transformação de uma língua ou linguagem implica a transformação de mundos por elas constituídos. Por outro lado, a concepção de Humboldt leva à conclusão que a extinção de uma língua, cada uma em sua estreita conexão com a cultura da qual participa, elimina também uma visão de mundo. Com cada dialeto que deixa de ser falado, some uma variação de uma concepção da vida. De acordo com a Sociedade de Línguas Ameaçadas, estima-se que existam atualmente cerca de 6500 línguas, sendo que 50% delas estarão sujeitas à extinção nos próximos 100 anos. A capacidade de preservação e expansão de uma língua é atribuível à potência econômica e numérica de seus falantes e à coesão interna e resistência externa dos mesmos. O avanço e predomínio globais de determinadas línguas estão, dentro da lógica de Humboldt, acompanhados por um linguicídio em escala planetária, e com ele a morte de milhares de perspectivas de mundos possíveis.
Palavra não é espelho
A linguagem concebida por Humboldt, não como descobridora de verdades pré-existentes, mas como criadora de realidade, enfatiza o valor produtivo da diversidade cultural e do papel gerador da subjetividade. Essa apreciação positiva da potência criadora da linguagem foi posteriormente contrastada por diversas abordagens críticas. O filósofo Friedrich Nietzsche (1844 a 1900) abriu novas perspectivas à reflexão crítica da linguagem ao dizer que a linguagem se destinava originalmente à auto-preservação e à sobrevivência; a palavra, de início, não passava de um estímulo nervoso em forma de sons, e em seu desenvolvimento lingüístico servia no rebanho humano à evitação de conflitos e à criação de consenso.
Sofrendo um processo de amnésia irreversível e confiando cegamente na metaforicidade da palavra e no valor da razão, os seres humanos se esqueceram desta origem e finalidade da linguagem, destinada a favor da vida. No lugar disso chegaram erroneamente à idéia que linguagem servia à descoberta da verdade. Essa falsa crença se tornou uma das maiores fontes de força e de dominação no processo civilizatório. Segundo Nietzsche, a existência da verdade, das essências, substâncias, identidades, ordens, das coisas e classes de coisas com suas qualidades, das finalidades, dos conceitos morais, das leis como o da causalidade e do Eu como causa do pensamento – tudo isso não passa de ficção e se deve ao engano de supor que a estrutura da linguagem esteja espelhando a realidade: a ordem gramatical sugere uma ordem de mundo. Através da idéia da identidade, que estabelece uma ilha imutável no eterno fluxo do devir, a caótica diversidade fenomenal do mundo é simplificada, ordenada. A linguagem, ao denominar e mediar, torna tudo mediano; generaliza e vulgariza a unicidade de cada evento da natureza, inclusive o próprio falante que denomina as coisas. A natureza parece dominada sob a força aterradora dos túmulos da percepção, os conceitos. Mas, de acordo com Nietzsche, tudo isso não passa de ilusão, auto-engano. O mundo entorpeceu e petrificou na linguagem. O fluxo vital secou, atomizou-se em fatos. Mas a linguagem não espelha fatos. Fatos não existem, diz Nietzsche, o que existe são interpretações. O ceticismo de Nietzsche não o levou à proposta de um silêncio nem místico, nem resignado. No lugar de um calar-se, Nietzsche vislumbrava a utopia de um ser humano intuitivo, criativo e subversivo, desconstrutor e reinventor da linguagem ressecada em sua própria ossatura, através do uso artístico e poético da palavra.
Fritz Mauthner (1849 a 1923), escritor e filósofo, contemporâneo de Nietzsche com quem compartilhava várias idéias, rejeitava por inteiro a possibilidade do uso adequado ou verdadeiro da linguagem, discutido posteriormente por Wittgenstein em seu Tractatus logico-philosophicus.[5] Mauthner afirmava a origem social e até mesmo “socialista” da linguagem, o que, em sua visão, assegurava à linguagem a proximidade com a fofoca, o blábláblá. Linguagem, diz Mauthner, é uso de linguagem. Ela não existe por si mesma, mas somente em suas atualizações concretas. Enquanto modo de ação integra a realidade, mas ela não possibilita o conhecimento do mundo e muito menos leva à comunicação e ao entendimento mútuo, pelo contrário, a linguagem isola e aprisiona o ser humano. Não é o falante que faz uso da linguagem, é a linguagem que domina o falante através de seus elementos, suas estruturas e regras. O próprio Eu é ficção de linguagem e o reconhecimento desta ficção leva ao naufrágio de todos os modelos de conhecimento baseados em relações entre sujeito e objeto. A crítica mauthneriana não visa à reforma ou melhoria da linguagem, mas propõe o seu suicídio. Como a linguagem perdeu sua função primordial da compreensão, deve-se aprender a ficar calado.
Limites da crítica
Como se percebe, a crítica da linguagem e de seus limites, não alcança uma plataforma de articulação extralingüística e permanece com raras exceções - como p.ex. a crítica de linguagem do poeta, diretor e teórico teatral e ator Antonin Artaud (1896 a 1948) seguida por sua produção de glossolalias - no perímetro da própria linguagem. Ao dizer que tudo é falso, a crítica incorre inevitavelmente numa contradição lógica resultante da própria estrutura da linguagem.
O extremo ceticismo de Mauthner e de Nietzsche está muito distante do uso cotidiano e ingênuo dos idiomas. Aprender um idioma pressupõe confiança pragmática nas potencialidades da língua, na possibilidade de participar e interferir em outros mundos e no intercâmbio de idéias e emoções com os falantes desta língua. Muito mais do que os limites, o aprendiz está interessado nas possibilidades que o uso do idioma lhe oferece. Mas é exatamente em função da exploração propositiva que a crítica da linguagem proposta por Nietzsche e muitos outros importantes escritores e grandes estilistas merece o respeito dos usuários comuns da língua. Trata-se de exploradores apaixonados da palavra que, ao explorarem as fronteiras do dizível, contribuíram para extensão e redefinição das mesmas.
Linguagem e corpo
Cada língua está impregnada não somente por estruturas e dinâmicas gramaticais, mas também por uma complexidade referencial de tradições, valores e narrativas regionais, locais e individuais. Ao absorver uma língua ou uma linguagem, esta se torna parte de nosso corpo e molda futuras maneiras de percepção, experiência e interação com o mundo. Corpo e linguagem são inseparáveis. Antes mesmo de chegarmos a participar plenamente dos jogos de linguagem de nossas culturas, a língua materna nos lambe da cabeça aos pés, ressoa em nossos corpos com seus estímulos sonoros, suas entonações, e desperta nosso jogo de cintura com sua batida e sua jinga locais. O ambiente geográfico-cultural nos invade com odores, cores e sabores, com um banho de variações barométricas e uma massagem de valores e tradições impregnados e encarnados na atmosfera e coreografia gestual e vocal de nossos familiares, vizinhos, co-cidadãos e ancestrais, penetrando nossos corpos por todos os poros de modo pré-racional, criando a sensação de pertencia a um lugar e um grupo populacional específico, preparando futuros juízos e escolhas. Cultura e linguagem rodeiam, invadem e se apropriam do corpo inicialmente como ambientes sensoriais e sensuais, e somente aos poucos são vistos como sistemas sígnicos racionalmente legíveis. Cada cheiro, cada sabor, cada som e cada fala vêm inseridos em determinadas partituras e dramaturgias sócio-culturais que definem a variam as emoções e os pensamentos do corpo. Na medida em que língua, linguagem e cultura se instalam, desenvolvem freqüentemente uma atividade sistemática e parasitária em seus hospedeiros. A permeabilidade, porosidade, fluidez e flexibilidade iniciais dos corpos cedem gradativamente ao enrijecimento, às vezes chegando à rejeição e negação total e totalitária de qualquer estímulo desconhecido, ou seja, justamente daquilo que era necessário à formação de suas valiosas identidades: o fora e a outridade. Quanta diferença um corpo agüenta? Em nome da preservação da identidade, da cultura e das tradições com seus valores e verdades, o corpo com freqüência se torna refém das ordens que nele se instalaram e dos quais tanto se orgulha, buscando somente o reforço, a retroalimentação e a repetição sistêmica destas ordens: os mesmos estímulos, as mesmas respostas e as mesmas constantes tentativas de transformar o mundo ao redor numa extensão de si mesmo.
Cultura como re-configuração do corpo-lingaugem
O encontro com outros e diferentes ambientes, linguagens e culturas como seus respectivos estímulos, expõe o corpo do aprendiz e do viajante não somente a novas informações, narrativas e artefatos culturais, mas antes de tudo o afeta também de modo sensorial: os estímulos estranhos despertam outras sensações, e na medida em que o corpo aceita o contato e a interação com o novo ambiente ele próprio se reconfigura e diversifica, entrando num processo de flutuação identitária e de mestiçagem cultural. Vivenciar a diversidade multiplica e modifica não somente nossas perspectivas e visões de nossa cultura de origem e do mundo, mas ao transformar o nosso corpo, modifica nossos modos de expressão e nossas tradições, possibilitando um retorno ao sentido originário do conceito da cultura, entendida como processo de transformação ativo.[6] Esse retorno, que avança em direção ao sentido transformador da cultura, mostra-se particularmente relevante em condições e períodos sócio-políticos em que as conquistas culturais do passado viraram um fardo e um freio, uma segunda natureza morta cujos agentes ignoram que a identidade cultural seja uma processo dinâmico que não consiste, em primeiro plano, em práticas sócio-culturais de conservação, mas numa discordância crítica e afirmativa do status quo através da invenção de novas formas de vida.
[1] Desde já seja apenas recordado que a língua - que ocupa uma função elementar nos processos de articulação e modulação - enquanto fala e meio interpessoal de expressão e comunicação, depende na transmissão de sensação e sentido fundamentalmente da interação da respiração, da dicção e da voz, isto é de suas bases fisiológico-funcionais.
[2] O termo língua natural distingue línguas faladas por seres humanos de linguagens formais (linguagens lógicas, matemáticas e de computação).
[3] É estudada pelas mais diversas disciplinas como a lingüística, a análise de conversação, pragmática, a teoria dos actos de discurso, a retórica, as ciências de literatura, a etimologia e a filosofia da linguagem, entre outras.
[5] Uma das motivações do Tractatus lógico- philosphicus de Ludwig Wittgenstein é a distinção entre o uso de linguagem apropriado e do uso não-apropriado. Wittgenstein via a tarefa da filosofia na delimitação do território do dizível a partir de critérios lógicos. Do ponto de vista lógico, não se pode dizer nada a respeito do indizível, sem incorrer em uma tautologia. Em sua filosofia tardia Wittgenstein sustentou que a observação dos modos de uso dos jogos de linguagem em nosso cotidiano torna evidente a compreensão do uso adequado da linguagem. Apesar de sua inquietude com o indizível, o pensamento de Wittgenstein aponta para uma avaliação positiva da potência e da validade da linguagem como elemento indissociável da práxis social e de modos de vida específicos.
[6] Acerca da noção de ‘cultura’ aqui referida veja o artigo “Was ist Kultur?” (O que é cultura?) do filósofo social Oskar Negt em: http://alpha.dickinson.edu/departments/germn/glossen/heft3/negt.html .